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5 de março de 2008

Sobre professores e o costume de usá-los como bode expiatório


Blog "dubitandum", de Gustavo Ioschpe no website da VEJA
Nota de Segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Salário de professores

Reportagem da Folha de S. Paulo de segunda-feira trouxe dados sobre o aumento salarial de professores. Estudo do Inep indica que os salários dos professores do setor público aumentou 39% entre 2003 e 2006, contra 17% da inflação do período. Um ganho real de 22% em três anos, portanto.

Outro trabalho de pesquisadora da FGV aponta que de 1995 a 2006 os ganhos salariais de professores da rede pública foram maiores que os da rede privada e o de outras categorias de trabalho.

São mais informações que só vêm ratificar aquilo que a literatura empírica já aponta há bastante tempo: não há relação estatisticamente significativa entre os salários de professores e o aprendizado dos alunos. No período estudado, a qualidade da educação brasileira só caiu.

Todos nós adoraríamos dar mais dinheiro aos professores – especialmente aos bons professores. Mas, se estamos preocupados com a aprendizagem dos alunos, fica patente que há melhores estratégias do que essa. Insistimos na idéia de que melhores salários gerarão melhor qualidade há mais de dez anos, desde pelo menos a criação do Fundef. Quanto tempo – e quanto dinheiro – adicional será gasto até que optemos por outros caminhos?

Precisamos melhorar a formação dos professores, o gerenciamento das escolas e as práticas dos professores dentro de sala de aula. Enquanto ficarmos no quantitativo – mais salário, mais computadores, mais merenda, mais transporte etc. – continuaremos patinando.





Depois de ler esta nota, não me contive, e enviei uma mensagem ao colunista expressando minha opinião. Quem já leu um texto que publiquei antes aqui mesmo sabe que tenho esta opinião formada a um certo tempo:




Caro Gustavo,

Em seu blog “dubitandum ”, dentro do website da Veja, li sua nota do dia 25 de fevereiro de 2008 intitulada “Salário de professores”.

De fato existe a necessidade de melhorias em diversos aspectos da educação em nosso Estado e em nosso país, aspectos estes diferentes de mero aumento salarial da categoria dos professores. Porém, algo em sua nota me deixou incomodado a ponto de lhe escrever (eu não costumo fazer isso com ninguém). Há tempos vejo muitas pessoas falarem e escreverem sobre o assunto de maneira semelhante a que você escreveu, me fazendo pensar se não é uma opinião comum da imprensa em geral.

Do modo que você escreveu a nota, entendo que seu posicionamento é que:

  1. Segundo o Inep, os professores reclamam de barriga cheia (mas ainda assim seria bom dar mais dinheiro a eles, afinal um ganho de 22% em um salário de R$800,00 são R$176 reais, o que é uma fortuna diante do reajuste do salário mínimo, mas que é pouco para uma família e pouco para o sacrifício pessoal que cada professor honesto e decente faz, afinal 22% de pouco é pouco)
  2. Os professores não se encontram preparados ou são incompetentes para educar nossos jovens, tendo em vista que “precisamos melhorar a formação dos professores, o gerenciamento das escolas e as práticas dos professores dentro de sala de aula. ”

Não sei se a nota foi apenas isso (uma nota), se pretendia gerar alguma reflexão em seus leitores, colocando a situação de acordo com seu ponto de vista. De fato, entrei em seu blog de maneira casual (sou leitor do blog do Reinaldo Azevedo e ouvinte do podcast do Diogo Mainardi), mas ao ler esta nota, fiquei de certa forma indignado. Como disse, já li e ouvi muita coisas semelhante a isso.

O problema da educação no país, espero que você já saiba e concorde, não pode ser atribuído apenas aos professores, tão pouco pode-se exigir apenas deles a solução. Utilizar este discurso é fazer dos professores meros bodes expiatórios do problema. Muitas pessoas tem analisado a situação sob esta ótica extremamente míope, esquecendo-se que o problema da educação é muito mais profundo, indo muito além da escola e da sala de aula. Os professores são o fim de uma cadeia que começou errada, e por si só não tem poder para mudar nada. O mundo real, infelizmente, não é como naqueles filmes americanos bonitos onde um professor chega a uma escola barra-pesada e muda a vida de todos.

Um filme brasileiro sobre o mesmo tema seria mais ou menos um drama nos seguintes moldes: uma professora de artes, em uma escola estadual na periferia, pede a seus alunos que façam um desenho sob seus sonhos e desejos para o futuro. Suas aspirações e suas vontades para dali a 5, 10, 20 anos. Ela realiza este trabalho com alunos de diversas idades, do ensino fundamental até o supletivo noturno, com pessoas dos 12 aos 50 anos. O objetivo não era o desenho em si, mas sim fazer com que as pessoas tivessem a oportunidade de exercitar sua imaginação com base nas suas esperanças mais básicas: uma profissão, um bem de consumo, um relacionamento, um status social, uma crença religiosa, uma viagem, uma mudança na sociedade, etc.

Mas o que acontece então é algo que reflete bem o tamanho do problema da educação, não só em São Paulo, mas em todo o país. Dos alunos, a grande maioria NÃO CONSEGUE DESENHAR NADA. Você e o possível espectador poderiam até imaginar que eles não sabiam COMO desenhar, mas o problema não era esse (já que muitos haviam feito desenhos razoáveis antes em outras ocasiões meramente técnicas). O problema é que eles não sabiam O QUE desenhar.

Indagados sobre o motivo de nada desenharem, eles simplesmente falam “não conseguimos imaginar nada para o nosso futuro”. A professora, preocupada, pergunta se eles não tem vontade de ser alguma coisa no futuro, como médico, advogado, dentista, office-boy ou jogador de futebol, sei lá, qualquer coisa que lhes desse um objetivo na vida! E eles diziam que não... os adultos, por sua vez, restringem-se a idéia de manter sua posição profissional ou grau social atual, sem mobilidades.

Dentre eles, poucos, muito poucos, não só desenhavam como desenhavam com convicção. Os desenhos não eram lá grande coisa, mas o que eles desenhavam era maravilhoso, por mais simplório que fosse: significava que eles tinham algum sonho, algum objetivo, algo a perseguir em suas vidas.

Esta história, infelizmente, é real. Esta professora é a minha esposa, e esta escola é fica em um bairro da periferia de Campinas. Isso ocorreu no ano passado, e me lembro até hoje de quando ela me contou este fato. Fiquei tão arrasado quanto ela. As escolas públicas, desde muitos anos, são meros depósitos de pessoas, deixadas lá por pais que pensam que é responsabilidade dos professores educar aquelas crianças e jovens naquilo que eles mesmos tinham como obrigação ensinar e prover: respeito, ética, carinho, amor, esperança, humildade... não que os professores não devam oferecer estas coisas aos alunos, é claro que devem! Mas como os alunos receberão isso de um praticamente estranho, se nem de seus próprios pais e irmãos recebe?

Se analisar a vida destas jovens, verá que a maioria não possui uma família estruturada. Quando tem uma família, falta comida, amor ou respeito. Muitos são criados só pelo pai, ou pela mãe, ou nem isso. Muitos tem destes “pais” aquele tratamento minimalista em que seus progenitores, pensando que lhes dar um pouco de comida e um lugar para dormir é o bastante, não demonstrando nenhum interesse pela vida, futuro ou felicidade de seus próprios filhos, ou por negligência, ou por incapacidade.

Destes pais, muitos não são propriamente culpados. Durante muito tempo a sociedade se deixou adoecer e insensibilizar pelo descaso e pelos interesses de inúmeros governos, empresas e grupos, os brutalizando desta forma. A má distribuição de renda, a má qualidade de diversos serviços públicos básicos (dentre eles a própria educação), a falta de emprego e a escalada da violência e do crime aprisionaram grande parte da sociedade (principalmente nas periferias) a um sistema fechado de brutalização, que se retro-alimenta e se expande com um desempenho notável, semelhante apenas à forma que um câncer se desenvolve em um organismo vivo.

Diante disso, chega a ser nojento ouvir a secretária de educação do Estado insinuando que a maioria dos professores que faltam todos os dias nas escolas são vagabundos (que é a idéia que me parece que está sendo vendida à sociedade nos ultimos tempos), querendo até mesmo (veja só) limitar a quantidade de dias que os mesmos poderão faltar por motivos de saúde!

O caos, a pressão e o sentimento de incapacidade diante de uma situação que eles mesmos não tem a menor possibilidade de resolver é tão grande que a maioria absoluta destes que faltam, faltam por estarem verdadeiramente doentes; emocional e psicológicamente comprometidos e desgastados, com o coração em frangalhos.

Muitos professores (arrisco em dizer que a maioria) tem que fazer terapia com psicólogos para suportar a situação (minha esposa inclusive, e acompanhada por um psiquiatra e por medicação). Ouvir acusações de que são vagabundos, ou que reclamam de barriga cheia ou que são incompetentes é ofensivo, imoral e totalmente descabido.

Se nada for feito, não tardará até que todo o país fique mergulhado neste caos, em um período curto, que atingirá já a próxima geração de brasileiros (se não a nossa mesmo). Não tardará para que o corpo que a sociedade representa morra por metástase. E quando isso ocorrer, até aquelas partes do corpo que se julgavam intocáveis sucumbirão, não é mesmo?

Ninguém fala dessa tragédia diária nos jornais. Ninguém fala disso na TV. Ninguém fala nos blogs sobre a lama podre que está bem debaixo de nossos pés, sob uma fina camada de ordem que fica mais frágil dia a dia. Ao invés disso, preferem falar da ponta do iceberg que são os professores. Que eles precisam de um melhor preparo, não há dúvida! Que eles precisam de uma formação melhor e mais moderna é tão óbvio quanto preciso! Mas eles estão longe se ser até mesmo o pavio da bomba relógio que instalaram em nossa nação no passado e que as pessoas no poder da situação, ao invés de desarmar, pelo contrário, vem dando manutenção nela, fazendo o possível para que ela não estoure enquanto eles mesmos estiverem no poder.

Assim, seria de uma tolice e ingenuidade sem tamanho afirmar que um professor que ganha bem e que tem mestrado em educação, sociologia e psicologia, além de treinamentos diversos em pedagogia e em sua área de conhecimento detém a capacidade de atrair a atenção, esforço e vontade de uma criança ou de um jovem para a escola e o estudo, a fim de progredir em sua vida de uma maneira honesta, saudável e ética. Porque, do lado de fora, esta mesmo jovem vê uma realidade totalmente diferente, cruel e sanguinário. Seus amigos vendem ou consomem drogas; em casa falta comida e os pais não ligam para ele, sendo indiferentes ou os maltratando. Com o meio social em que vivem se encontrando imerso em uma injustiça que já ultrapassou todos os limites, eles não tem meios de ter esperanças ou sonhos. E uma pessoa sem esperanças e sonhos é uma pessoa morta, mesmo que viva.

Esta é uma sociedade onde bandidos usam vans cheias de crianças como reféns. Onde bandidos arrastam o corpo de uma criança pelas ruas até ela morrer de maneira brutal. Onde policiais são mortos a plena luz do dia emboscados em lugares de grande movimentação, sem o menor pudor. Onde políticos ficam cheios de dedos para dar um aumento do salário mínimo, mas não titubeiam em usar cartões corporativos e desviar verbas para fins escusos.

Neste mundo, é muito mais lógico para um jovem esmurar a cara e uma professora em plena sala de aula do que prestar atenção no que ela ensina, ou do que pensar em seu próprio futuro. Por mais técnica, amor e conhecimento que o professor possa ter, ele não tem meios de atingir o coração e a mente de alunos inserido neste mundo insano.

A educação é tratada com grande demagogia por todos nós em maior ou menor grau. Todos já sabem muito bem que ela é um dos alicerces da sociedade, mas o fato é que sozinha ela nada pode fazer. Ela por si mesma não sustenta um povo. O que sustenta uma sociedade é uma educação de qualidade, um sistema de saúde digno e uma verdadeira distribuição de renda por meio do acesso ao emprego, e não por meio de programas sociais que assemelham-se a esmola. Nenhum deles ou mesmo dois deles é capaz de sustentar a sociedade ou a si mesmo.

De fato, é como um tripé. E como todo tripé, ele deve estar apoiado sob sub uma superfície plana, permitindo que aqueles que nela estejam possam ser elevados a um patamar mais alto. Esta superfície é a instituição chamada FAMÍLIA, que foi destroçada em nosso país. Sem família, uma nação não tem chão para pisar. Lembra daqueles alunos da escola que desenharam com convicção? Vá até a casa deles e veja: eles tem uma família saudável, enquanto que muitos dos outros (não todos, porque generalizar e rotular qualquer coisa é sempre um erro) não.

Trata-se, assim, de uma cadeia de eventos. A família é destruída e seus integrantes não se importam mais uns com os outros. Portanto, não são capazes de se importar de fato com os demais integrantes da sociedade, destruindo as bases desta sociedade, levando-a a entropia total.

Desta forma, acho descabida a afirmação de que a responsabilidade ou boa parte dela seja dos professores. A responsabilidade de fato é de todos nós, que votamos em políticos para nos representar, mas que representam apenas a seus interesses pessoais. Se nossos políticos fossem honestos, se a máquina administrativa fosse ética e correta, nada disso estaria ocorrendo. Portanto, só quando isso ocorrer é que teremos estes e tantos outros problemas solucionados.

Não consigo ver ainda uma forma de quebrar esta cadeia de acontecimentos trágicos, que vejo como de ordem cultural e não educacional. Mas sei que não é apenas por meio dos professores (que já lutam todos os dias nesta verdadeira guerra) que isso ocorrerá. Será sim por meio da reestruturação e salvação da família brasileira.

Espero que entenda que eu precisava expor meu ponto de vista diante disso, mesmo que possa ser, em termos, contrário ao seu. Pelo menos, que sirva para enriquecer o debate sobre o assunto.

Um abraço
Daniel Paixão Fontes

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